Como o perito sabe se a pessoa entende o que está acontecendo?
Em uma perícia psiquiátrica judicial, o perito precisa responder a uma das perguntas mais delicadas e importantes do processo:
👉 a pessoa entende o que está acontecendo à sua volta?
Essa avaliação é essencial em casos que envolvem responsabilidade penal, interdição civil, aposentadoria por invalidez ou guarda de incapazes, pois determina se o indivíduo tem discernimento e consciência da realidade.
Mas afinal, como o perito faz essa análise com segurança científica e jurídica?
Resumo rápido:
O perito avalia se a pessoa entende o que está acontecendo por meio de entrevista clínica, observação comportamental, aplicação de testes cognitivos, análise de coerência nas respostas e verificação da consciência sobre si, o tempo, o espaço e o motivo da perícia.
1. Avaliação do nível de consciência e orientação
O primeiro passo da perícia é avaliar o nível de consciência e a orientação global da pessoa.
O perito observa se o avaliado:
- Está desperto e atento;
- Sabe quem é, onde está, o que está acontecendo e por quê;
- Reconhece o momento temporal (dia, mês, ano).
📋 Esse processo é conhecido como avaliação da orientação autopsíquica e alopsíquica.
Desorientação nesses aspectos pode indicar transtornos mentais graves, demências ou estados psicóticos.
2. Entendimento da situação judicial
O perito verifica se a pessoa compreende o contexto da perícia e seu papel no processo.
Ele pode perguntar, por exemplo:
- “Você sabe por que está aqui hoje?”
- “O que significa uma perícia judicial?”
- “Você entende o que o juiz quer saber com este exame?”
As respostas permitem avaliar se há consciência das consequências legais e noção da própria condição mental.
Falta de compreensão pode indicar comprometimento do discernimento jurídico e social.
3. Coerência no discurso e no raciocínio
Durante a entrevista, o perito analisa se o pensamento é lógico e coerente.
Alterações cognitivas ou psicóticas podem gerar:
- Contradições no discurso;
- Dificuldade de manter uma linha de raciocínio;
- Ideias desconexas ou fantasiosas.
🧩 Um raciocínio organizado e lógico sugere que a pessoa entende o contexto da situação e o que lhe é perguntado.
4. Avaliação da crítica e do juízo de realidade
O juízo crítico é a capacidade de reconhecer o que é real e o que é fruto da imaginação.
O perito observa se o avaliado:
- Entende que está sendo avaliado por um profissional nomeado pela Justiça;
- Diferencia pensamentos próprios de fatos reais;
- Reconhece que suas ações têm consequências jurídicas.
Quando a pessoa não distingue realidade de delírio, há comprometimento do discernimento e da imputabilidade penal.
5. Testes cognitivos e neuropsicológicos
Para complementar a entrevista, o perito pode aplicar testes padronizados, como:
- Mini Exame do Estado Mental (MEEM) — avalia memória, atenção e orientação;
- WAIS-IV — mede raciocínio e compreensão verbal;
- Teste de Julgamento Social — analisa capacidade de tomar decisões lógicas;
- Escalas de Insight — medem o grau de consciência sobre a própria condição mental.
Esses instrumentos ajudam a determinar se a pessoa entende o que acontece e consegue interpretar informações complexas.
6. Análise do comportamento e das reações emocionais
Durante a entrevista, o perito observa expressões faciais, entonação, contato visual e respostas emocionais.
Reações exageradas, risos inapropriados ou falta total de emoção podem indicar alterações mentais que interferem na compreensão da realidade.
Exemplo: um paciente com esquizofrenia pode parecer desconectado da situação, enquanto alguém com depressão grave pode demonstrar lentificação e dificuldade de concentração.
7. Observação do insight (autoconsciência da doença)
Insight é a capacidade que o indivíduo tem de reconhecer que está doente.
O perito investiga se o avaliado entende que apresenta um transtorno e se sabe a importância do tratamento.
📍A ausência de insight é comum em psicoses e demências, o que limita a compreensão da própria condição e do contexto judicial.
8. Análise documental e comparativa
O perito revisa relatórios médicos anteriores, atestados, histórico de internações e testemunhos familiares.
Esses dados ajudam a confirmar se o comportamento atual é coerente com a evolução clínica do caso.
Quando há compatibilidade entre o histórico e a avaliação atual, o perito tem maior segurança ao concluir que a pessoa compreende ou não o que está acontecendo.
9. Integração entre fatores clínicos e jurídicos
Após coletar dados clínicos e comportamentais, o perito integra as informações para responder a perguntas jurídicas, como:
- “O indivíduo tem capacidade civil?”
- “Ele entende o caráter ilícito de seus atos?”
- “Pode responder por suas decisões?”
Essa integração transforma o exame médico em prova técnica com valor jurídico, permitindo ao juiz decidir com base científica.
10. A importância da empatia e da escuta qualificada
Um bom perito não apenas avalia — ele escuta com empatia e neutralidade.
Compreender o que o avaliado sente e pensa é essencial para captar nuances cognitivas e emocionais.
A empatia técnica não compromete a objetividade, mas favorece uma avaliação mais precisa e humana.
Conclusão
Saber se uma pessoa entende o que está acontecendo é uma tarefa complexa, que exige ciência, sensibilidade e ética.
O perito combina observação clínica, raciocínio técnico e instrumentos psicológicos para chegar a uma conclusão sólida e fundamentada.
Mais do que uma avaliação médica, é um ato de justiça e proteção à dignidade humana.
FAQ — Perguntas Frequentes
1. O que significa “entendimento do que está acontecendo” na perícia?
É a capacidade da pessoa de compreender o contexto da avaliação, suas consequências e a natureza jurídica do processo.
2. Como o perito avalia se o paciente tem consciência da realidade?
Por meio de entrevista clínica, observação comportamental e testes cognitivos padronizados.
3. A falta de entendimento pode isentar alguém de responsabilidade penal?
Sim. Quando comprovado que a pessoa não tinha discernimento, pode ser considerada inimputável, conforme o artigo 26 do Código Penal.
4. Toda pessoa com transtorno mental tem dificuldade de entendimento?
Não. Muitos transtornos não afetam o discernimento. A avaliação deve ser feita individualmente.
5. O perito conversa com familiares para confirmar informações?
Sim. Sempre que necessário, o perito pode ouvir familiares ou cuidadores para contextualizar o quadro clínico.
6. O juiz é obrigado a seguir a conclusão do perito?
Não. O laudo é uma prova técnica, mas o juiz pode formar sua própria convicção com base no conjunto das provas.
7. O perito pode errar na avaliação?
Sim, embora raro. Por isso, o juiz pode solicitar nova perícia se houver dúvidas ou inconsistências.
8. O que acontece se o avaliado se recusar a responder perguntas?
O perito registrará o comportamento no laudo, e isso será considerado na análise do caso.
9. Testes psicológicos sempre são aplicados?
Não necessariamente. O uso depende do caso, da complexidade e da necessidade de comprovação objetiva.
10. O laudo é confidencial?
Sim. Ele é protegido por sigilo judicial e só pode ser acessado por partes autorizadas.
Referências
- Brasil. Código Penal Brasileiro — Art. 26: Inimputabilidade.
- Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Manual de Perícias Médicas Judiciais, 2021.
- American Psychiatric Association. DSM-5-TR: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 2022.
- Organização Mundial da Saúde (OMS). CID-11: Classificação Internacional de Doenças, 2023.
- Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução nº 2.217/2018 – Código de Ética Médica.
- Scielo Brasil. Avaliação de discernimento em perícias psiquiátricas: revisão integrativa, 2022.


